Quarto de despejo e cAROLINA MARIA DE JESUS
- Juliano Ferro

- 26 de abr.
- 2 min de leitura

Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) foi uma das mais importantes escritoras negras do Brasil. Era catadora de papel e morava na favela do Canindé, em São Paulo, quando começou a compor seus diários. Sua obra mais conhecida foi “Quarto de Despejo”, publicada em 1960 e traduzida para cerca de catorze idiomas. Nela, a escritora relatou seu dia a dia na favela com os três filhos, onde a luta contra a fome e pela sobrevivência era uma constante dolorosa de sua rotina. Alguns trechos do diário traduzem seus desafios: “Eu já estou tão habituada com as latas de lixo, que não sei passar por elas sem ver o que há dentro”; “Hoje estou com sorte. Tem muito papel na rua”; “O José Carlos (filho) chegou com uma sacola de biscoitos que catou no lixo. Quando eu vejo eles comendo as coisas do lixo, penso: E se tiver veneno?”; “Passei no frigorífico, peguei uns ossos. As mulheres vasculham o lixo procurando carne para comer. E elas dizem que é para os cachorros. Até eu digo que é para os cachorros...”; “preterir o preto é o mesmo que preterir o sol. O homem não pode lutar contra os produtos da natureza”.
O livro gerou críticas e repercussões das mais variadas feições desde seu lançamento. Sobre a questionada autenticidade, Manuel Bandeira uma vez disse que ninguém inventaria a linguagem e o sentimento de Carolina. Rachel de Queiroz também falou sobre isso: “o que choca e impressiona e nos vai direto ao coração num livro como o de Carolina é a sua autenticidade palpitante, e aquele gosto cru de vida ao natural, aquela sensação de contato com matéria-prima, em vez de produto manufaturado”. A verdade é que, se essa invenção houvesse sido real, no todo ou em parte, com efeito não teríamos uma mentira a ser descartada. Vidas como a de Carolina caminharam para o futuro e, atualmente, elas ainda constituem uma implacável e presente realidade no mundo.
A excentricidade do texto e da vida da autora não suprime completamente o seu lirismo. Mas a força maior da obra está no protagonismo universalizante da miséria humana, autobiografada pela mãe solteira, preta, favelada e excluída, aliada de uma narrativa que extrapola a literatura e pede diálogo com importantes foros da ciência humana.
“Quarto de Despejo” faz um convite necessário, com uma linguagem simples e clara, a que não ignoremos uma realidade ainda tão carente do nosso constrangimento e da nossa sensibilidade. A experiência da leitura pode ser grande, de um modo ou de outro, e naturalmente dispensar o rigor da forma, sobre o que, também, tanto já se falou. O mundo exigiu muito de Carolina Maria de Jesus. Não poderíamos exigir mais isso dela.
Juliano Ferro
Recife, agosto de 2024.

Juliano Ferro é escritor e servidor da
Controladoria-Geral do Estado de Pernambuco.
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