Do Subsolo à Superfície: A Consciência e a Arte em Tempos de IA
- Juliano Ferro

- 26 de abr.
- 6 min de leitura
Atualizado: 27 de abr.

No segundo semestre de 2022, fomos surpreendidos com o ChatGPT, mas ele só me intrigaria mesmo em 2024, ao finalmente conhecê-lo, um ano após publicar o meu livro Toque de Arrebol, escrito entre 2014 e 2021 e registrado na Biblioteca Nacional em março de 2022. Fiquei boquiaberto com a performance da ferramenta de IA e, num primeiro momento, devo confessar que também receoso em relação à possível ameaça que ela poderia representar para aqueles que se esforçam nas mais diversas expressões da criação humana. Sendo uma ameaça ou não, a verdade é que em termos de literatura, por exemplo, esse anseio não distorce o que a obra representa para o próprio criador. Entretanto, embora deva ser um aliado nos mais diversos aspectos da produção humana, o ChatGPT inegavelmente põe em questão o mérito individual, principalmente num primeiro momento, e pode se tornar, sob determinados aspectos, um dificultador para o justo reconhecimento do autor e do seu trabalho. Afinal, se alguém publica é porque deseja que sua obra seja conhecida.
Após a edição e divulgação de um livro, quando o escritor relê o seu trabalho é comum achar que poderia ter feito algo diferente. Encontram-se errinhos de edição, vírgula fora do lugar, por exemplo, falhas que muitas vezes escapam ao olhar mais atento do próprio escritor e do revisor e que podem ocorrer nas mais conceituadas publicações. Machado de Assis, gênio da literatura brasileira, escreveu a seguinte nota, em 1907, à reedição de seu livro A Mão e a Luva:
Trinta e tantos anos se passaram desde o aparecimento desta novela, agora reimpressa, e isso talvez explique as diferenças de visão e estilo do autor. Se hoje ele não lhe daria o mesmo formato, é certo que, no passado, foi ele quem o fez; e, no fim das contas, tudo contribui para definir a mesma pessoa.
A obra estava fora de circulação há muito tempo. O autor, então, aceitou o conselho de confiar esta nova edição ao editor de seus outros livros. Nenhuma alteração substancial foi feita; corrigiram-se apenas erros tipográficos, de ortografia e suprimiram-se cerca de quinze linhas. Segue, pois, como saiu em 1874.
Em outro momento, quando da reedição de Helena, Machado escreveu:
Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me fez depois, correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876.
Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.
O autor não apenas compreendeu que era impossível reescrever sua juventude, ele encontrou no respeito a essa condição um modo consciente de preservar o valor da obra.
No mês passado, li Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoiévski, publicado em 1864. Sendo uma das obras mais profundas do autor russo, o romance é narrado por um protagonista negativista e recluso, que analisa as contradições humanas. Na primeira parte, ele questiona a racionalidade, a liberdade e a moralidade da sociedade moderna. Na segunda, passa a se lembrar do seu passado, explicitando sua incapacidade de se conectar afetivamente e sua tendência ao afastamento. Apesar de muito ressentido, ele é uma figura hiperlúcida, que estranhamente se orgulha de sua visão mórbida do mundo.
Memórias do Subsolo significou um marco na literatura, do ponto de vista estético, psicológico e filosófico; o livro é considerado uma fonte embrionária do existencialismo e teria influenciado nomes como Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Franz Kafka, Virginia Woolf, Sigmund Freud, entre outros. Freud chegou a afirmar que Dostoiévski era, ao lado de Shakespeare, o maior conhecedor da psicologia humana na literatura. Concordando ou não com as assimilações desses pensadores, o fato é que todos eles assumem uma inquestionável importância na história do conhecimento humano.
A obra citada atua em conceitos como o que afirma ser o excesso de lucidez um fardo para as pessoas, expondo, ainda, que o ser humano promove autossabotagens e sente prazer em certos sofrimentos e atos de rebeldia. O leitor é convidado a visualizar lados incômodos da própria natureza contraditória, que insiste em ocultar ao longo da vida. A reflexão, enfim, foca na liberdade dos indivíduos, em suas dores e responsabilidades existenciais, sugerindo que eles devam ser livres, inclusive, para se ferir, porque esses impulsos também integram uma condição real de liberdade.
Cada pessoa tem uma experiência particular com as obras que lê. Não aconselho Memórias do Subsolo – antes que eu me esqueça – a quem deseja uma narrativa linear, com lições claras. Alguns trechos do livro beiram o ensaio filosófico e, além disso, o protagonista está longe de ser uma figura agradável. Ele é amargo, contraditório e ironiza o leitor. Entretanto, pode-se reencontrar na leitura a importância que o ceticismo agrega diante das certezas fáceis. Esse é o tipo de provocação que amplia consciências. Para alguns leitores, pode significar apenas um autoflagelo. Mas aí, ademais, reside a chave, porque tal abertura pode significar para ele um olhar mais sensível do outro, o que retroalimenta, ainda, a autocompaixão, ao enxergar essencialmente a condição existencial em sua natureza falha. Assim, pode-se reafirmar que a falta de empatia parte, em grande medida, da incompreensão de si mesmo: como um ser imperfeito, longe de se tornar uma equação. Ao ocultar essas ambiguidades, o indivíduo, muitas vezes, se investe de uma autoridade que não possui, julga e condena facilmente, tolhe liberdades que não são suas.
Isso faria extremo sentido se as pessoas dependessem de uma completa razão para sobreviver. O fato é que características como desejo, vaidade, raiva e mesmo prazer em destruir o que foi construído não cabem em uma expressão algébrica. Embora sabotador, o protagonista de Memórias do Subsolo experimenta algum contentamento em encarar a própria sordidez, como criatura consciente, sensível e falha, mas ainda passível de plenitude. É assim que ele tateia as sombras ocultas que também integram sua liberdade real. O fato de ser fascinante, embora às vezes pareça cruel, não significa que deva ser imitado. É necessário apenas entender que as pessoas precisam ser livres, ainda que isso lhes custe a própria paz. Em acréscimo, o subsolo não deve ser visto como uma morada definitiva ou um convite ao niilismo, porque ele é um lugar de passagem. Viver ali seria envenenar-se para sempre. O livro, embora ainda pouco compreendido por muitos, sugere que o leitor retorne desse estado levando consigo outras compreensões de sua natureza humana.
Enxergar-se imperfeito e limitado, em sua plenitude, talvez seja, por excelência, a mais nobre elevação do discernimento. Fazer um paralelo entre literatura, consciência e ferramentas como o ChatGPT, que simula a emoção com uma combinação de estatísticas linguísticas, é promover, ainda, um cotejo entre razão e sentimento. Acredito que o valor artístico, por exemplo, se realiza na presença humana, e não na ausência da falha. Em dado trecho, o personagem afirma: “Dois e dois são quatro é uma coisa abominável. Dois e dois são quatro é arrogância.”, pretendendo recusar a ideia de que a vida humana possa ser reduzida à lógica, ao cálculo, à previsibilidade. Há algo na arte e na subjetividade que grita contra essa ordem, e isso pode ser a própria liberdade. Não que a tecnologia e a ciência devam ser rejeitadas. Longe disso, a IA parece ter vindo para revolucionar e contribuir em todas as áreas, mas a extinção humana em curso precisa ser repensada; aqui não se trata da ameaça ao corpo, mas à consciência que se subtrai no processo de automação da subjetividade. Fernando Pessoa, em 1931, ensimesmava em seu Poema em Linha Reta: “Onde é que há gente no mundo?”. Pois é... para onde estamos indo?
Passado o primeiro susto com a IA, reafirmo valores na minha literatura que podem ser explicados justamente em minha existência falha e contraditória, forjada numa busca intuitiva e pesarosa por liberdade, de um autor que sobrevive até nos silêncios e abismos diante de si mesmo, ignorando certas lógicas e razões, sendo capaz de sobreviver mesmo quando a conta não fecha. Já sou outro, aliás. E sigo constituído inclusive das ausências que doem em mim.
Juliano Ferro
Recife, abril de 2025.

Juliano Ferro é escritor e servidor da
Controladoria-Geral do Estado de Pernambuco.
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