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TOQUE DE ARREBOL 
(SEM SPOILERS IMPORTANTES).

_____Tenho um interesse profundo por minhas raízes, pela formação cultural da nossa gente e no conhecimento desse processo histórico e humano, por admitir com nitidez que tais atenções, além de permitirem autoconhecimento, ensejam debates e abertura de janelas para mais conhecimentos e descobertas, como não poderia deixar de ser. Em ideia consentânea, verifico na literatura e valorizo nela a possibilidade de elevação da nuance mais trivial a um debate amplo, universal e agregador. Assim, tenho nessa possibilidade a explicação que julgo objetiva e compensadora para o fascínio que ela me desperta, enquanto outros impulsos me escapam à inteira compreensão.

_____Há uma conceituação conhecida, na literatura, que fala sobre serem os dramas humanos essencialmente os mesmos, que eles se universalizam e se eternizam, apesar de os indivíduos serem tão diferentes uns dos outros, seja em seu foro íntimo, no contexto em que se inserem ou na cultura com a qual se identificam. Shakespeare conseguiu demonstrar, com sua arte, que a própria complexidade é comum a esse universo e que todas as pessoas sustentam seus conflitos e dilemas. Estamos, de um modo geral, sempre em tensão por decidir entre o certo e o errado, lutar contra a morte, lidar com questões de fé, resistir a opressões e nos adaptarmos a várias circunstâncias. O genial Liev Tolstói também é conhecido pela profundidade com que aborda temas universais. Em “Anna Kariênina”, o leitor se depara com dramas de infidelidade, hipocrisia, responsabilidades parentais, autoconhecimento, tragédia, etc. No Brasil, o escritor Ariano Suassuna, certa vez, disse numa entrevista: Você pode ser rico ou pobre, mas os problemas que afetam verdadeiramente o ser humano são os mesmos.

_____Também creio que por essa janela sensível o literato engenhoso captura o que há de maior e mais proveitoso no universo da experimentação do comportamento humano, mesmo quando debruçado sobre pequenas células. Tal possibilidade de projeção sempre me seduziu, assim como, agora falando sobre opções e escolhas, a habilidade de alguns no exercício de sua manifestação artística, ao produzirem códigos e pensamentos que me tocam na assimilação do belo. E aqui eu não omito o meu amor à língua portuguesa. Assim, a arte, para mim, dialoga intimamente com esse olhar generativo sobre o sonho e a realidade humana, e com uma noção livre, inteira e até imprecisa do que me é verdadeiramente cativante.

_____Pois bem, servindo-me dessas concepções é que efetivamente me emociono com a literatura, seja em leituras escolhidas ou na produção dos meus textos, embora tais preceitos não importem em vinculação, porquanto me sinto livre ao ler e escrever. Inclusive, às vezes escapo completamente ao que poderia ser definido como premissa. Esse descompromisso ainda me permite, de maneira interessante, encontrar demais relações com o mundo e igualmente surpreender-me. Entretanto, mentiria se não dissesse desse fio tão consciente quanto intuitivo que me conduz em minha perspectiva sobre a arte literária. Dito isso, posso considerar que meu romance "Toque de Arrebol” é influenciado por tais procuras.

_____O palco da experimentação é o estado onde nasci e me criei, Pernambuco, tão rico e efervescente em sua concepção de mundo múltiplo, com as complexas e polivalentes marcas históricas e seu definitivo berço de acolhimento, onde se amalgamam tantas expressões humanas. Esse traço histórico é notadamente marcado pelas sociedades indígenas, colonizações promovidas pelos europeus e transferência de mão de obra escrava para cá.

_____Os dois principais personagens marcam bem essa diferença humana. A propósito, eles e os demais são exemplos congruentes dessa variação, como não poderia deixar de ser. Porém, neste estado, a condição não apenas existe como também resta contornada em sua orquestração histórica, hoje podendo ser reverenciada por sua rica polifonia, mas que, também, ainda guarda memórias e feridas absurdamente tristes, com marcas não reparadas.

_____Eles são Eugênio e Cecília. O primeiro é um jovem multi-instrumentista, de descendência russa, que chega ao Brasil, com seus pais, aos oito anos. É filho do empresário russo Mikhail Dmitriev e de Eleonora Ferreira, uma recifense que, anos antes, viajou para a Europa e lá conheceu seu futuro marido. O menino, que já demonstrava habilidade musical numa escola para músicos de Moscou, chega ao Brasil e de imediato ganha, como presente, um piano, instrumento que o ajudará a reparar a angústia sentida por deixar para trás a rotina e o contexto com os quais já havia se acostumado. O presente também sugere a influência do pai, um homem de temperamento conservador e atraído por costumes clássicos.

_____Eugênio cresce em Recife, cidade multicultural, ainda bastante influenciada pelas ideias trazidas nos movimentos “Armorial” e “Manguebeat”. O primeiro foi empreendido, sobretudo, pelo escritor Ariano Suassuna, que objetivava criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste brasileiro. O outro foi influenciado especialmente por Chico Science. Este jovem e seus companheiros propunham um movimento de contracultura na cena musical do estado, misturando elementos da cultura regional, como o maracatu rural, com a cultura pop, mormente o rock'n roll e o hip-hop.

_____É nesse cenário de pluralidades que o menino passa a transitar entre o piano e a guitarra, abarcando, em seguida, outros instrumentos que identificam a cena da música no estado, como alguns usados no maracatu: gonguê, ganzá e alfaia. Esse impulso também é permitido por seu temperamento, de um jovem expansivo e que busca estar envolvido por amigos. Eugênio igualmente se revela em seu imediatismo, com enfoque no tempo presente e nas festas que costuma frequentar, sem se indagar tanto.

_____Foi numa festa que estava ocorrendo em um apartamento com vista para os principais rios da cidade e para o mar, na Rua da Aurora, que ele conheceu Cecília, enquanto ela se recolhia na varanda, quando já não se integrava naquele universo vibrante da juventude, cujo foco se formava no interior do apartamento.

_____Cecília é mais introspectiva e questionadora, se atrai por literatura e, apesar de ser advogada, tem sempre um diário no qual ortografa suas ideias. Atribui a tendência às influências do avô, um homem inteligente e culto, que acabou transferindo para a neta aqueles interesses. Além disso, quanto à música, Cecília também tem uma dissenção em relação a Eugênio, porque se afeiçoa ao movimento Armorial, enquanto ele, àquela altura, parece inclinar-se mais nas influências do Manguebeat.

_____Inobstante as diferenças, algo une os jovens: o interesse irrenunciável pela arte. Não apenas aquele consciente, mas o que misteriosamente passa a movê-los, principalmente, quando resolvem dar vozes e ritmos a expressões e sentimentos. É que, envolvidos, eles também fundem suas atenções em um projeto. Os textos que Cecília escreve viram música nas mãos de Eugênio, cujos temas e abordagens partem da observação feita por ambos da realidade que os cerca, bem como de experimentações subjetivas e existenciais dos próprios personagens. Em meio a esse envolvimento, eles também pactuam o que parece ser impossível, explorar a unicidade que reputam partilhar em seus temperamentos e observações. A tarefa absurda não impede os dois de levarem à frente o projeto em sua gênese também lúdica. O casal vai se movimentando, ainda, licenciado na febre que a paixão cede àqueles optantes dessa expedição com repercussões muitas vezes impensadas. A tarefa seria justificada no prazer com a experimentação da arte e com as questões e os debates alcançados.

_____Nesse processo, duas pessoas também são cruciais. Uma delas é Maurício, outro jovem multi-instrumentista que Eugênio conheceu no Conservatório Pernambucano de Música, de quem se tornou grande amigo. Além da parceria, Eugênio tem nele uma espécie de oráculo musical, ao considerar seu prodigioso talento. Maurício, assim, é convidado por Eugênio para participar do projeto, como uma terceira pessoa ouvinte daquela manifestação unissonante do casal e para colaborar nos arranjos. Outra pessoa importante nesse processo é Lúcia, uma doutoranda em Letras que traz do interior do estado sua porção de germinações, com limitações e perdas, uma delas, de sua filha Suelen, cuja morte a mãe atribui sobremaneira à falta de uma adequada assistência de saúde pública no lugar onde moravam, numa extensão rural do município de São Bento do Una, por nome Serrote do Gado Bravo. O casal conhece Lúcia numa livraria, enquanto conversa e toma um café, e é ela quem sugere a comunhão dos gostos artísticos de ambos num projeto, por ver na poesia e música duas artes que podem se relacionar. A aproximação e permanência de Lúcia também vão se justificando na admiração quase poética que Cecília desenvolve por ela já no primeiro encontro, pelo modo resiliente como a mulher assume sua vida, apesar das provações pelas quais teve de passar, algo que, de certo modo, também liga Cecília a Eugênio, na sede dele por viver sua plenitude, exercendo a capacidade invejável de não se atormentar tanto com questões, feito ela própria, embora ele também possa ter seus motivos para exasperações, como nas cobranças feitas pelo pai, um homem ortodoxo e em crise com sua própria índole, que procura impor à esposa e ao filho a moralidade que não encontra nos próprios hábitos.

_____Sem um plano inicialmente definido para além das composições, os jovens iniciam no processo artístico o exercício de autoconhecimento e de exame crítico do contexto histórico e sociocultural nos quais estão envolvidos, em que os problemas de uma capital brasileira como o Recife, grande e caótica, entram em contato com o temperamento de jovens inicialmente propensos a representações autênticas da realidade, às vezes numa proposta de desumanização, noutras, de completo envolvimento, sob influência, ainda, da percepção rítmica de Maurício e do olhar crítico de Lúcia, esta que também passa a conhecer as composições e opinar. O projeto desaguará em um festival de música apresentado no bairro da Várzea, um dos históricos palcos da Veneza Brasileira.

_____A música empenhada por eles soa o resultado de sua alquimia de ritmos, mesclando manifestações diversas e em certa medida incompreendidas pelos próprios artistas, que sequer conseguem nominar a produção, haja vista a influência de tantas vozes, batidas e sentimentos. Essa imprecisão parece não incomodar os experimentadores, porque mesmo o tempo e a vida se lhes ensejam senão um profundo mistério à luz de cada imaginação. Por conseguinte, o universo e a própria natureza estariam em orquestra, e essa plenitude se tornaria factível enquanto o tempo, numa concepção tão abstrata quanto reveladora, permitisse a integração do infinito e da realidade em cada consciência.

_____Metaforicamente, a grande música está revelada no céu em sua constante dança e em seu padrão vibratório de dias e noites, exibindo aos expectadores certa solução de início e fim, como músicas que iniciam e acabam. O arrebol aproxima as extremidades, acusa o tempo em sua inexorável pressa, assim como cede a bons olhos a justa filosofia de quem atesta, em cada dia que nasce, a oportunidade da reorquestra, enquanto tal relativização do tempo não se lhe fecha em sua cortina incoercível, quando, enfim, a batuta é deposta de vez. Apesar disso, conforme a arte também insere, o fenômeno do tempo parece reconhecer o cosmo em sua eterna possibilidade de reelaboração. A aurora ressurge e outros seres pedem passagem ao firmamento, enxergam o futuro, a eles fazendo crer, intuitivamente, que cada indivíduo colabora para o universo se manter em sua misteriosa e eterna possibilidade de concerto.

_____Apesar de os personagens não encontrarem um nome para o estilo musical desenvolvido, se o fizessem, poderiam associá-lo ao próprio termo “arrebol”, pela proximidade dos sentimentos à metáfora desenvolvida, devido, ainda, à beleza que o fenômeno encerra no céu, bem como por acreditarem numa correspondência estética entre a expressão e dado ritmo ou instrumento. Ademais, o envolvimento de artistas tão diferentes, numa cidade marcada pela multiplicidade, cada qual levando à bagagem as respectivas idiossincrasias, fará com que os personagens experimentem, no apogeu do seu próprio festival, um êxtase absoluto, uma catarse, sobretudo nas figuras de Eugênio, Cecília e Maurício. Esse processo de envolvimento psíquico e artístico revela muito mais questões do que respostas, como mesmo entendo que a vida ocorre, porque o debate tem maior importância que a utopia das razões, já que, num mundo tão polifônico, o verdadeiro e autêntico se tornam cada vez mais uma abstração.

      Outra observação que faço, das mais importantes sobre a obra, refere-se à estrutura narrativa. O narrador, além de acompanhar o desenvolvimento dos personagens e das cenas, muitas vezes adentra os textos e as músicas produzidas por eles ou simplesmente é cativado pelas falas e experiências, o que justifica as passagens em que as construções narrativas, incluindo os diálogos, ganham um tom de prosa poética. Esse efeito é intencional. O livro avança, sobretudo, sobre o projeto artístico que os personagens desenvolvem, no qual fundem literatura e música para promover uma releitura do contexto social e de suas próprias subjetividades. A partir daí, eles passam a experimentar efeitos decisivos de ressignificação e ruptura. O narrador também é absorvido por esse universo artístico, estruturado por várias camadas, incluindo os conflitos geracionais que envolvem os personagens e a relação deles com familiares e amigos. Cecília observa com admiração e humor a erudição e o lirismo exacerbado do avô; emociona-se com a “vida-poesia” de Lúcia; reconhece em Eugênio sua sede de liberdade; e ele também carrega suas expectativas, que comporão a obra. Essa rede complexa de assimilações, própria da experiência humana, também retocará o universo literário escolhido pelo narrador. Ao fim, a arte precisará representar toda a complexidade do microcosmo humano trabalhado na obra, para autodeterminar-se e empenhar o seu papel.

_____Feitas essas considerações, o que vem depois, com as respectivas impressões que fortuitamente aconteçam, pertence à experimentação do próprio leitor, que certamente fará escolhas numa maneira própria de entrar em contato com o livro e seus personagens.

_____Ainda garanto, de passagem, que as explanações aqui realizadas não maculam a autonomia de leitura da obra, porque a estruturação de tais ideias é inserida num modelo direto e, honestamente, sem o expresso intuito de surpreender. Desse modo, estas considerações não atrapalham as descobertas mais sensíveis a serem feitas. Entretanto, reitero, sobre o que vem depois ou transcende essas observações é que este autor não ousa se imiscuir em detalhes, inclusive porque ele próprio detém dúvidas e se interessa pelas questões que continuam.

Juliano Ferro

Toque de Arrebol_capa
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Opinião

(...) O que quero dizer é que ainda não temos um romance urbano moderno que se sobressaia e que elabore as cidades implacáveis e violentas que cresceram e nos massacraram e massacram nos séculos XX e XXI, principalmente no Nordeste. Qual não foi a minha surpresa quando li este “Toque de Arrebol”, de Juliano Ferro, um rapaz jovem e que localiza seu texto e os conflitos do enredo na cidade do Recife. Seus personagens vivem confrontos psicológicos geracionais, de valores e os relativos à imigração, temas candentes deste século XXI... Não só: apesar de o livro ter chegado a minhas mãos para correção, em 2021, quase não fiz alterações, porque Ferro sabe a língua portuguesa, discutiu comigo de forma madura suas opções linguísticas e recursos de expressão, o que mostra o seu esforço na direção da preparação para o ofício de escritor (...).

Flávia Suassuna

Escritora e Membro da Academia Pernambucana de Letras

Poemas
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