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O Caso Dreyfus e "Em Busca do Tempo Perdido": o que os clássicos nos ensinam?

Atualizado: 18 de ago.

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Quem lê Em Busca do Tempo Perdido, romance literário do escritor francês Marcel Proust, se permite aproximar-se de temas complexos que envolvem as relações humanas, além de conviver com um narrador que promove mergulhos em sua subjetividade para buscar os sentidos da vida e a compreensão de si mesmo. A obra em tudo faz provocações filosóficas sobre a sociedade, o amor, a morte, a arte e o tempo, expondo, a partir do seu microcosmo, aspectos universalizantes da experiência humana que transcendem seu contexto histórico e social.

É impactante a força e a beleza da série constituída em sete volumes, que, embora tenha sido produzida entre 1908 e 1922, permanece rica e atual, assim permitindo a identificação, pelas sociedades do século XXI, de similares desejos e fobias, daqueles mesmos anseios e medos presentes no universo descrito por Proust, onde se visualizam semelhantes causas e consequências em torno de tudo quanto une ou afasta os indivíduos. Aquela sociedade é demonstrada em sua encenação constante, nas relações por interesse, como se pode verificar, por exemplo, na rede de pessoas que acessam o salão dos Guermantes (Volume 3). A questionável dinâmica de aceitação e exclusão, sob critérios controversos de titulações, popularidade e influência, todos eles profundos em sua superficialidade, não se intimidou com o passar dos anos e chegou à nossa atualidade agravada pela velocidade e intensidade como tudo ocorre.

O equilíbrio entre ficção e realidade confere maior consistência e autenticidade à narrativa, com a incorporação de fatos que marcaram a sociedade na época. É o exemplo do caso Dreyfus, um dos maiores escândalos políticos da França do final do século XIX, que envolveu a injusta condenação de Alfred Dreyfus, um oficial judeu acusado de traição. O caso, à época, evidenciou delicadas tensões antissemitas e políticas, e Proust utilizou o fato para explorar complexos assuntos afetos a preconceito, hipocrisia, nacionalismo e justiça. Isso porque o povo francês se dividiu nos denominados “dreyfusistas” e “antidreyfusistas”, e essa fragmentação acabou por afetar amizades, alianças e reputações. Popularizou-se aí, inclusive, o uso do termo “intelectual”, após uma carta aberta escrita por Émile Zola, “J’accuse...!”, em que o escritor defendia Dreyfus e acusava os erros cometidos contra ele. Os apoiadores, geralmente escritores, filósofos e acadêmicos, eram pejorativamente referidos como “les intellectuels”. Em face da repercussão, o embate também ganhou espaço na ficção, alcançando os personagens de Proust em seu prestigiado Em Busca do Tempo Perdido. Ao assumirem posição diante da polêmica, eles se permitem evidenciar em suas personalidades e consciências de classe, prato cheio para um narrador notadamente analítico e sensorial.

O capitão Alfred Dreyfus, acusado de vender informações secretas aos alemães, foi injustamente condenado à prisão perpétua e rechaçado pela opinião pública. Descoberto o erro, que abrangia a falsificação de provas e manipulação de informações, ainda assim o exército teria insistido na condenação, para proteger o verdadeiro culpado. Aliava-se ao fato um forte antissemitismo difundido no país, já que Dreyfus era judeu. Esse sentimento foi propagado no país após uma sucessão de fatos, e um deles foi o reconhecimento da cidadania dos judeus na França, em 1791, durante a revolução francesa, o que potencializou um extremo nacionalismo, também apoiado pelo exército, o qual, assim como a igreja, via os judeus com certa desconfiança.

Após fortes pressões internas e o artigo escrito por Zola, o caso foi reaberto e passou por reviravoltas. Finalmente, em 1906, Alfred Dreyfus foi declarado inocente de todas as acusações. O caso gerou impactos na sociedade francesa e, embora tenha exposto o preconceito institucionalizado no país, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, fortaleceu o antissemitismo já em curso. Apesar disso, o episódio significou um marco na luta pela defesa dos direitos humanos, demonstrando, ainda, que o nacionalismo extremado e o culto à autoridade punham em risco a busca pela verdade e justiça, em detrimento da dignidade humana, do pleno direito à defesa, à presunção de inocência e ao julgamento devido.

No livro de Proust, o tema é constantemente debatido, sobretudo pela elite e por intelectuais. No salão dos Guermantes, lugar frequentado por aristocratas, a maioria se posiciona contra Dreyfus, movida principalmente pelo antissemitismo e sentimento de classe.  O narrador, cuja reflexão sobre a sociedade amadurece ao longo da obra, torna-se cada vez mais crítico em relação a esse comportamento. Outro personagem que se destaca é Charles Swann, um homem inteligente e sensível, embora ambíguo, que simpatiza com o movimento “dreyfusista”. Essa simpatia se justifica, também, por sua descendência judaica, que contribui para ele não ser reconhecido um legítimo membro da elite. Além disso, embora rico, Swann não possui título, mas acessa a elite intelectual e se casa com Odette de Crécy, uma mulher de passado duvidoso, contrariando os códigos sociais da época.  Aos olhos do narrador, Swann, apesar de admirável, demonstra certa ingenuidade em alguns posicionamentos, quando, por exemplo, “passa a submeter todas as suas admirações e desprezos a um critério novo: o dreyfusismo”. Essas nuances permitem ao leitor entender que os personagens da obra não constituem arquétipos fixos; ao contrário, são complexos e contraditórios, e seus posicionamentos mudam com o tempo, ainda conforme suas conveniências. Essa dinâmica é amplamente observada na atualidade, com a tendência de os indivíduos se associarem em grupos e reduzirem o campo natural da reflexão a uma visão dicotômica da realidade.

Críticas às convenções e injustiças sociais estiveram presentes em muitas obras de grande repercussão. Dostoiévski, por exemplo, anos antes, havia tratado de conspirações e paranoias políticas em seu livro Os Demônios (1872). Em Boston (1928), obra do escritor americano Upton Sinclair, baseada na história real de Sacco e Vanzetti, o autor explora o preconceito e o impacto do julgamento moral na sociedade dos Estados Unidos. Pode-se citar, igualmente, 1984 (1949), de George Orwell, um livro inspirado na paranoia política e nos expurgos de governos repressivos, em que as pessoas eram presas e executadas sem provas. O romance distópico O Conto da Aia (1985), de Margaret Atwood, descreve um futuro totalitário no qual os EUA se tornam a República de Gilead, um regime teocrático e opressor, especialmente para as mulheres. Todas essas obras merecem a atenção do público devido ao modo provocador como suas ficções abordam as questões e ameaças humanas.

Não obstante as discussões levantadas pelo caso Dreyfus e por diversos outros casos mundo afora, antes e depois dele, a humanidade não deixou de traçar sua história com fatos pavorosos. Nunca é demais citar o massacre de cerca de 250 mil judeus durante a Guerra Civil Russa; o Holocausto da Alemanha nazista, que exterminou 6 milhões de judeus (incluindo 1,5 milhão de crianças); os diversos massacres motivados por xenofobia e toda uma crise ocasionada pelos refugiados na Europa. A verdade é que esses conflitos e debates nunca perderam a pauta. Recentemente, o governo Trump tem adotado a chamada “remoção acelerada”, uma manobra utilizada para promover a deportação em massa de imigrantes que vivem de modo ilegal no país. Esse assunto tem gerado apreensão, especialmente entre os setores progressistas, por considerarem que a medida acende um alerta sobre outros riscos humanitários envolvendo a questão, de injustiça e erros processuais, discriminação e estigmatização de grupos.

As provocações da literatura universal e a realidade do nosso tempo não são meras coincidências a serviço do entretenimento. Os clássicos constroem conexões entre o passado e o futuro; atuam como ferramentas de memória, consciência e transformação; provocam a nossa razão e sensibilidade. Francamente, porém, Em Busca do Tempo Perdido não é aconselhável para amadores, em virtude de sua complexidade desafiadora, seja do ponto de vista estilístico ou pela densidade como promove reflexões psicológicas e filosóficas, embora esses atributos justamente elevem o romance proustiano à merecida condição de obra-prima inesgotável. Não se pode dizer, ainda, que os clássicos sejam seletivos de público. Há obras para variados gostos, resistentes aos séculos, facilmente apreensíveis, ainda impávidas ante o furor dos mercados. Existe, nesse mar de provocações, onda em que se possa nadar com timidez ou ousadia. Um fato, todavia, reclama a sua evidência: uma obra de arte não pode ser desprezada, se até mesmo o tempo transigiu com ela. Perdida, afinal, é uma sociedade sem reflexão e sem memória, natimorta ao repetir sua história fracassada.   

 

Juliano Ferro

Recife, março de 2025.


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Juliano Ferro é escritor e servidor da

Controladoria-Geral do Estado de Pernambuco.


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