A LITERATURA
QUE HÁ EM MIM
_____A literatura, em minha vida, vem de longa data e por motivos importantes. Meu avô materno, Manoel Paulino de Sousa, era barbeiro e poeta, um homem simples e culto, que dirigia olhos sensíveis à poesia. Entre as muitas peças que recitava, uma delas decorara ainda quando criança. Chamava-se "Saudades do meu Sertão". Orgulhava-se, inclusive, porque o poema era grande de estrofes e versos, fato que levava os adultos de sua época a já enxergarem certa notabilidade no menino.
_____Até o mais tardar de sua existência, costumava recitar o poema à família e aos amigos, e creditava a ele um vínculo importante com sua vida. Ademais, o deixou datilografado pelas mãos da filha Tânia Ferro, minha tia, que também providenciou a recitação feita por ele em uma fita k7, nos anos 80.
_____Nunca descobrimos a autoria daquele poema de traços líricos, bucólicos e saudosistas, cujos versos de uma de suas estrofes compartilho:
Quem me dera, neste instante,
Voar nas asas do vento,
Para aqueles campos formosos
Onde está meu pensamento,
Onde o mimoso panasco
Cresce debaixo do casco
Da rês que foge do Carrasco,
Da que procura alimento.
Ai, que saudade dos campos
Onde está meu pensamento...
_____Aquelas atenções foram transferidas a filhos e netos. Assim, de forma direta ou indireta, chegaram a mim, o menino que tinha apenas 6 anos quando ele partiu. Esse legado me continuaria chegando, sobretudo, pelas memórias de quem melhor convivera com ele, os adultos que testemunharam, no dia a dia, o nobre caráter e sua sabedoria invejável.
_____De outro lado, veio minha avó materna, Hilda Ferro de Sousa, que possuía associação de parentesco com o grande escritor Graciliano Ramos, por parte da mãe dele, Maria Amélia Ferro Ramos. Minha avó nascera em Buíque, no interior de Pernambuco, e falava com orgulho das idas de Graciliano à fazenda do pai dela, Pedro Ferreira Ferro, lugar onde ele vivera após deixar Quebrangulo, em Alagoas. Ainda jovem, ela se mudara com a família para a cidade alagoana de Palmeira dos Índios, onde Graciliano chegara a ser prefeito. Lá estreitara os laços com outras pessoas ligadas ao renomado escritor e casara-se com véu e grinalda de uma irmã dele. Esses relatos ganharam importância nas memórias dela e daqueles com quem ela compartilharia as narrativas – nós, também orgulhosos da proximidade com um dos mais geniais escritores do país.
_____Assim, o gosto por ler e escrever inicialmente parece justificado nesse contexto, além de relacionado a uma maneira própria, não definitivamente justificada, de inclinar-me para a literatura, já que, apesar do orgulho que a família historicamente assumiu, apenas eu (das pessoas, hoje em dia, do meu convívio) resolveria, até agora, encarar o ofício de maneira um pouco mais séria. Tanto que, aos 10 anos, precocemente manuscreveria o meu primeiro livro, ao qual dei o título "Serrote do Gado Bravo". Ele conta a história de Pedrinho, um menino que mora com a família na zona rural que dá nome ao livro, no município pernambucano de São Bento do Una, cidade em que passei minha infância e adolescência e onde meu pai possuía uma propriedade rural. Além das aventuras que o garoto vive no lugar, ele também sonha em sair de lá e estudar, enfrentando as limitações que possui no acesso ao ensino. Talvez eu visionasse, em certa medida, o trajeto que precisaria percorrer para chegar ao Recife e concluir meus estudos, porque em São Bento do Una não havia, como ainda hoje inexiste, apesar de alguns avanços, uma instituição de ensino superior.
_____Adiantando-me à história desse primeiro livro, anos mais tarde o resgataria do arquivo de minha mãe, ela que costumava zelar pela produção dos filhos, incluindo bilhetinhos com homenagens e pedidos de desculpas pelas trelas da idade. Dessa forma, pude recuperar o livro, editá-lo e publicá-lo, fazendo consumado aquele que seria o primeiro sonho do escritor. Há muita coisa guardada e outros escritos se perderam no tempo, como tirinhas que eu produzia e lia para os meus amigos de infância, lá na Rua Milton Paiva.
_____A inclinação por escrever "Serrote do Gado Bravo" parte desse cenário e das influências que chegavam a mim. Naquela época, eu também já entrava em contato com alguns livros próprios para a idade, como os da "Série Vaga-Lume", os quais meu irmão Lincoln Ferro costumava comprar. Em data próxima, leria, também, "Meu Pé de Laranja Lima", "Doidinho" e outros.
_____Com o avançar da adolescência, eu descobri a biblioteca da Praça da Matriz, ainda naquele município, após esgotar os acervos da família – uma coleção com todos os romances de Graciliano Ramos, que havia na casa da minha tia Tânia Ferro; outra, com os de Jorge Amado, na casa de minha avó Hilda, e romances reunidos, como alguns de Machado de Assis e Hemingway. Naquela biblioteca da praça, descobriria romances de Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e outros.
_____Apesar dessas inclinações, da minha atenção e do gosto pela literatura, por uma razão que até hoje desconheço, chegada a época do vestibular, optei pelo curso de Ciências Contábeis, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e foi nessa época que deixei aquele Agreste para morar em Recife, em 2003. Por uma lógica evidente, precisei focar nos assuntos da faculdade, embora nunca tenha deixado de alimentar meu interesse pelo universo literário, sobretudo ao descobrir a Biblioteca Central (BC) e a do Centro de Artes Comunicação (CAC), naquela universidade, quando passei a ler Marguerite Yourcenar, Honoré de Balzac, Marcel Proust e Liev Tolstói. Alguns deles, escolhi pelos conselhos dados por minha professora de Sociologia, Conceição, no primeiro período de Contábeis, àquela época lecionado no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFPE. Também, nessa época, publiquei meu primeiro poema num jornal chamado "Flor de Algodão", sobre o qual não tenho mais notícias. O poema se chamava "Derrota" e pertenceu a uma época quando eu era influenciado pelos versos do poeta Álvares de Azevedo, notadamente por seu livro "Lira dos Vinte Anos". Ressalto que o “eu lírico” daquele poema talvez não permaneça mais em mim, não de maneira consciente. Ainda hoje o guardo e tenho um carinho especial por ele.
_____Também na faculdade, conheci o colega Adiniz Mendes, que na época fazia mestrado em Letras. Dividi com ele meu gosto pela leitura, e nós falávamos sobre livros e autores. Foi a primeira pessoa a tenazmente insistir para que eu largasse o curso de Contabilidade, por ratificar a dicotomia em relação ao meu temperamento. Ele me dizia que os professores do departamento de Letras adorariam me conhecer, porque apreciavam alunos desejosos da leitura e escrita, que entravam em contato com a arte literária antes mesmo de conhecer suas teorias.
_____Embora ciente dessa incoerência e tentado pelos conselhos, não revi a decisão à época. Também, até hoje, nunca aprofundei a reflexão que me poderia levar a uma conclusão do arrependimento. Talvez a tenha evitado. De outra forma, ainda penso que, se essa fosse a convicção, há muito ela já me seria evidente. Afinal, nunca associei a literatura a um meio de vida, inclusive porque eu a experimentei ainda muito cedo, quando sequer pensava em vestibular. Possivelmente eu tivesse produzido muito mais, nesse campo, se houvesse ingressado em Letras. Mas não foi o caso. Cedo, também imaginei que o curso em aplicadas poderia abrir portas interessantes no mercado de trabalho e no concurso público, a minha via profissional escolhida.
_____Com essa decisão, também deixei para trás os conselhos do amigo Mendonça Neto, escritor, político, advogado e jornalista nascido no Rio de Janeiro e radicado em Alagoas, de quem eu e minha irmã Janaína Ferro havíamos nos aproximado naqueles anos de faculdade. Troquei com Mendonça, na época, vários e-mails, enviei contos e poemas de minha autoria. Ele lia os textos e compartilhava outras ideias, inclusive a de que abandonasse, de vez, o famigerado curso. Ofereceu-me uma bolsa para estudar Comunicação em Maceió, numa faculdade onde ele lecionava. Também neguei. Ainda hoje guardamos alguns livros enviados por Mendonça, de sua autoria, com dedicatórias gentis, a exemplo de “Do Alto da Gávea”, no qual publicou algumas de suas crônicas.
_____Antes mesmo de terminar a faculdade, comecei a estudar para concursos públicos, precisava trabalhar e ganhar algum trocado. Em 2005, passei em um do Departamento Estadual de Trânsito de Pernambuco (DETRAN/PE) e consegui me formar com certa tranquilidade, porque estabelecia uma base financeira própria. Um ano e meio depois de formado, fui morar em Brasília, para trabalhar no Ministério da Saúde, na Esplanada dos Ministérios, em virtude de outro concurso no qual havia passado, desta vez em nível superior. Não passei muito tempo na capital brasileira. Poucos meses depois, tive de voltar para o Recife, porque havia saído minha nomeação como servidor de carreira da Controladoria-Geral do Estado de Pernambuco, órgão ao qual me vinculo até hoje.
_____Em meados de 2014, eu considerava que minha vida estava finalmente estabilizada, em termos de procurar um meio de vida, apesar de atuar numa área completamente diferente daquela que essencialmente me movia. Mas, por incrível que pudesse parecer, ainda pude fazer dela uma aliada em aspectos relevantes da minha personalidade. Atuando na gerência de auditoria, cujos desdobramentos das ações resultavam em relatórios, pareceres e notas técnicas, passei a desenvolver esses documentos escritos de maneira rotineira. Antes de completar dois anos no órgão, assumi posições de liderança nas ações de auditoria, período quando, além de me empenhar em textos técnicos, passei a revisar os documentos produzidos pelas equipes que eu liderava. Nada mal, apesar do envolvimento com matérias distintas daquelas que me encaminhavam nas letras, porque a tarefa me permitia estudos e exercícios constantes, tanto de matérias técnicas aplicáveis quanto, propriamente, da língua portuguesa, desde sempre me atraindo e fascinando.
_____Aquele enfoque, embora tecnicista, administrativo e mesmo jurídico, que constantemente me solicitava atenções de produção textual, também me punha em contato com assuntos inteiramente relevantes na construção de uma sociedade, concernentes à saúde, educação, segurança, cultura e de tudo o mais provido pelo Estado, porque a Controladoria se estabelece, em sua circunscrição, como órgão central de controle interno, com um olhar diligente em tudo quanto toca o interesse público.
_____Dito isso, fica mais fácil assimilar que esse olhar sobre o homem e a sociedade, embora exercido por outros caminhos, com evidente importância se relaciona à literatura, como ocorre a toda expressão que envolve as questões humanas, pela notoriedade dessa arte em seu trabalho propositivo entre indivíduos e sociedades, inobstante, muitas vezes, seu traço indireto e sem esse propósito claramente definido. Nenhum literato precisa seguir cartilhas, mas, por minha parte, na maneira como me envolvo com a literatura, e mesmo sem, algumas vezes, pautar esses propósitos, constato essa posição de exame e debate relacionada a indivíduos, desde sua unicidade ao limite possível de uma universalidade.
_____Não à toa, percebo nos literatos que admiro essa sensibilização provocada na relação com o mundo e consigo mesmo, antes de levar à página o que precisa ou simplesmente deseja dizer, porque a literatura ensejaria esse (a) reflexo (ão), em manifestação engatilhada por experiências e inquietações que nem mesmo o próprio escritor consegue delimitar com precisão.
_____Então, de certo modo, olhando por tal vertente, compreendo que ver e trabalhar as necessidades de uma sociedade, como servidor público, assumindo a representação e o gerenciamento de algumas necessidades que são, muitas vezes, inadiáveis, toca-me em minha condição de homem e no juízo de relações que procuro promover para entender um pouco dessa formação existencial. A experimentação também reflete um passo largo para entender e respeitar o mundo à minha volta, este que, não raro, de modo complexo e multifacetado, não faz senão exibir para mim a minha própria imagem, num processo delicado, pelo qual, certa feita, constato-me indivíduo atemporal e ocupante de todos os espaços. Seria essa uma razão suficiente de o ser humano dever preferir uma sociedade condignamente acomodada, em suas individualidades, em suas pluralidades, sob o alicerce do conhecimento e da experimentação, de assunção própria das multifaces e da incessante busca de equilíbrios, porque é absolutamente possível nos reconhecermos em cada pessoa que cruza o nosso caminho, encontrando nelas, de igual modo, outras partes do que, a bem de um mistério absolutamente provocador, ajudamos a compor envolvidos neste universo de incertezas.
_____Ainda naquele 2014, atraído pelo cinema, fiz um contato experimental com o teatro. Conheci atores, estudantes e produtores culturais. E foi nesse ano que escrevi o que, a princípio, seria um roteiro para filme. À época, dei-lhe o nome "Doce Vitral". Um dia, conversando com minha irmã, Janaína Ferro, que também sempre foi leitora voraz, mostrei a ela a ideia. Conhecendo as minhas vontades com a literatura, bem como a densidade e estrutura sugeridas pela narrativa, ela me disse que aquela abordagem, na verdade, merecia um romance. Tal consciência, de certo modo, já habitava em mim. Parecia-me uma confirmação. E foi assim que iniciei, em 2014, a escrita do meu livro “Toque de Arrebol”, para finalizá-lo, após algumas pausas e retornos, em 2021, no período da pandemia, quando o entreguei à minha primeira leitora, Flávia Suassuna, escritora e membro da Academia Pernambucana de Letras (APL). Pedi-lhe para fazer uma revisão, tarefa que ela aceitou generosamente. Flávia não passou muito tempo com o romance. Em seu prefácio, ela inseriu: "apesar de o livro ter chegado a minhas mãos para correção, em 2021, quase não fiz alterações, porque Ferro sabe a língua portuguesa, discutiu comigo de forma madura suas opções linguísticas e recursos de expressão”. Essas palavras me encheram de orgulho, assim como aquelas nas quais ela diz que meu livro havia sido uma surpresa para ela, ao chegar a suas mãos num momento em que, conforme seu entender, ainda não havia um romance urbano moderno que se sobressaísse no país, abordando nossas cidades implacáveis.
_____Em março de 2022, estive à Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco, onde também fica a unidade regional da Biblioteca Nacional, para dar entrada no registro da obra, antes de oferecer o original às editoras. No final de fevereiro de 2023, fechei contrato com a editora Litteris, sediada no Rio de Janeiro. Em setembro daquele mesmo ano, estaria lançando "Toque de Arrebol" na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro.
(Continuação na seção Toque de Arrebol)

Juliano Ferro é escritor e servidor da
Controladoria-Geral do Estado de Pernambuco