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Dor e Beleza: A Arte Possível

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Muitos escritores dominam as regras gramaticais vigentes e podem compor um texto tecnicamente perfeito, ainda mais agora com a disseminação dos recursos automatizados de escrita. Em vários casos, esse tecnicista, ao modo natural ou não, atento ao seu tempo, discorre sobre o tema de sua escolha com o mesmo pragmatismo com que um exímio engenheiro une conceito e método para erguer seu admirável arranha-céu. Outro, em vez disso, preferirá romper forma e conteúdo, como quem remove rochas que obstruem a empreitada, importando-lhe, tão somente, a coisa dita, às vezes pressupondo na própria ruptura a vazão da ideia mais promissora. Os perfis citados são exemplificações; certamente existem outros. Não há, contudo, como definir o que seja certo ou errado em matéria de arte. E aqui me refiro a quem essencialmente a tenciona. Interesses que tangenciam esse prisma também podem representar fenômenos relevantes, mas devem ser vistos nas devidas perspectivas: autoafirmativas, lucrativas e de outras ordens.

Admiro, em particular, quem alia o domínio da técnica tradicional à criatividade estética, saudando essa fusão com reflexões significativas sobre o ser humano e seu novo tempo. Mas há algo mais que me chama no escritor: sua capacidade de comover-se, que não significa, meramente, vocação à ternura; tampouco me refiro ao sujeito mal-educado, por julgar que tal atributo deva eventualmente pertencer aos personagens de sua obra. O que quero dizer é que a virtude literária também reside na secura e na austeridade. Mas o venerável literato é perito em traduzir seus ressentimentos com tal precisão que nauseia e sacia ao mesmo tempo, como a montar um primoroso banquete à reflexão do leitor. Esses escritores geralmente possuem, para além do refinamento estético e da capacidade de refletir entre o sono e a vigília, um traço lírico que evoca dor e beleza; e não desejam descartar toda forma de incoerência, embora essa condição tantas vezes retorne questões sem solução, não raro necessárias. Num entrelaço, o risco da comoção me capta com graça suficiente para atordoar e estimular. Leio e escrevo feito precisasse de alguns tormentos para, fascinado, tolerar o mundo.

A poesia impregna o olhar, o sentir, mas seu condutor por excelência é a palavra. Ainda falo de paixões, é pessoal. Outro dia, passei em frente à casa onde minha avó morou e parei por alguns instantes. Fui inundado por pesares que ainda me interessam e aprazem meu deliberado desejo de lamentar. Fui absorvido pela poesia do silêncio, ali parado, olhando a porta por onde tantas vezes entrei para conversar com a senhorinha agora ausente. Logo pensei em um texto bem bonito. Há pessoas que passam pelos corredores da infância e nada sentem. E tais indivíduos também escrevem. Não os censuro, assim como não critico aqueles para quem a poesia somente agrega valor se afagar. Sinceramente, já não desejo esse ânimo abstraído. Também os citados versos às vezes me tomam, mas em seguida lhes oponho este franco receio da decepção, procurando, com cuidado, ainda combater o medo excessivo, porque ele sabota prazeres. Nem sempre consigo; é o preço de almejar sobrevivência em meio a tantas indeterminações.

Ocasionalmente, me apavoram as saudades que ainda suportarei; odeio o impulso futuro de traduzi-las, para assim, terrivelmente, evocar memórias capazes de me deslumbrar. Essa poesia já existe e antecipa neste ser o tempo que, embora o aprisione e o devaste, também o aprimora. Se leio um poema como “A Carolina”, escrito por Machado de Assis quando do falecimento de sua esposa, intuo a tristeza degustada pelo autor na mecânica inútil e paradoxalmente funcional dos versos. É como se ele comprovasse, em sua aptidão artística, que só a magistral beleza estaria perfeitamente apta a traduzir e recompensar tão imponente perda. E aqui não me refiro à plenitude que requer hiperbolismos, porque o simples também dilacera e fascina. Falo do belo que é belo, ele por ele mesmo. A literatura prodigiosamente (e apenas) funciona, para formar o tecido cognoscível da arte: complexo, relativo, misterioso e encantador...

Essa compreensão com justiça me perturbaria se ao menos uma pessoa não detivesse por trás de cada satisfação um fio de tristeza qualquer. Em relação ao bom, sobrevém o receio sobre sua finitude ou ressignificação. “Aproveite a vida enquanto pode” – pulsa a sabedoria popular porque o medo reverencia a efemeridade. É feliz, afinal, quem nina a tristeza até que ela adormeça. De outro modo, qual pessoa nunca se cansou do próprio prazer? Eis uma tensão entre os extremos: o tempo também nos curando do que é bom. Talvez, aqui, quem me leia possa entender a razão desta saudação à antinomia. Não se vive sem assombro; e porque a arte é humana, ela pulsa na fragmentação. Não fosse o sofrimento, não haveria o sublime.

Contemplar o belo pode significar um presente e alento do medo, inflamado pelo passo largo do tempo. Há quem não se importe com nada disso. E está bem. Mas, francamente, não me cativa a arte traída pela insensibilidade do criador. A dor e o encantamento encorajam o ser humano na busca da beleza; e a literatura, também, respira a tudo isso. Alguns apanham, por exemplo, aquele brinquedo favorito, há muito condenado ao esquecimento, e erguem diante dos olhos nada além do objeto inservível. Em uma ocasião como essa, me sentiria satisfeito em verter um choro doloroso e sincero, por não desejar descartar a poesia capaz de justificar a minha vida.  

 


Juliano Ferro

Recife, agosto de 2025.

 


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Juliano Ferro é escritor e servidor da

Controladoria-Geral do Estado de Pernambuco.


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