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Geórgia Alves

Outro dia, em dado artigo, eu dizia que a arte constituía elemento inteiro e incomparável, mas ainda capaz de nos agregar outros frutos e meandros saborosos. Pois bem, é verdade. Estive na Bienal da Bahia, no último maio. Lá conheci a jornalista e escritora recifense Geórgia Alves, no estande da Palavra Encantada. Levava ao evento seu “Reflexo dos Górgias”, que propõe uma reconstrução humana a partir do amor e da relação com o outro, num experimentado esforço de refletir. Entre um papo e outro, leu para mim trechos de sua novela literária e de cara demonstrou, para além do gosto por sua produção, a inclinação de comunicar, expressar. Afinal, é jornalista por formação. Não à toa. Demonstra notável desenvoltura ao alcançar sua posição de fala, aliando a ela a educação, articulação e leveza que lhe são próprias.

Adiante, já em Recife, trocamos nossos livros num café e estivemos com Raimundo Carrero em seguida. No decorrer da semana, examinei seu “Retrato dos Górgias”, que é o xodó dela, conforme me disse. Havia me advertido, ainda, para ler sem pressa, porque a apreensão requeria calma e vontade. Conferi isso na prática.

A obra não oferece leitura fácil, é marcada por introspecção, exame de questões existenciais e incessante busca de autoconhecimento. Além disso, a narrativa às vezes parece filtrada numa excentricidade linguística que inicialmente me pareceu intencional. Questionei-me se havia, da parte da autora, um desejo implícito de confundir, romper paradigmas, inserir neologismos ou mesmo ironizar, não necessariamente o leitor, mas feito recurso integrante na maneira reticente de manifestar o que ainda não sabe se aproveita a mais enigmas ou convicções. Minha dedução de partida se somou à menção de Górgias, porque o título do livro (Reflexo dos Górgias) e o nome da própria personagem (Górgia), além de fazerem aproximação com Geórgia numa sugestão de paronímia, também alcançariam Górgias de Leontinos, um sofista que viveu na Sicília por volta de 485 a.C. e que se notabilizou por sua oratória eloquente e persuasiva, pautada notadamente numa filosofia paradoxal, também constituída na crença das ilusões geradas pelos sentidos e por sua retórica performática. O filósofo grego afiançava o poder transformador da palavra e experimentava métodos objetivos e inovadores de utilizá-la. Considerava, além disso, serem elas capazes de transformar o estado da alma, assim como as drogas fazem ao corpo.

De um modo ou de outro, toda leitura nos solicita discernimentos e advertências do mundo à nossa volta, num confronto do eu com demais existências e seus impulsos fenomenais. Felizmente, Geórgia Alves existe antes e depois de sua obra, esta que em parte me resta oculta em seu novelo criativo. Sendo assim, por ora parto do livro ao indivíduo, para melhor hipótese.

De carisma e oratória incontestáveis já à primeira vista, Geórgia articula uma fala fluida e assertiva. Sua leveza é de deixar à vontade até os menos confiantes, e assim ela vai traçando as redes ou estradas pelas quais escolhe passar, somando à sua odisseia artistas e amigos que possam tornar mais eclético, justo e agradável o mundo que abraça, sem abrir mão deste em sua vertente sempre contestável, como não poderia deixar de ser, devido à sensibilidade de uma mulher com coragem não apenas diante de si mesma. A propósito, como ela mesma descreve em seu livro: “A verdade é um exercício de abstração neste universo”. E é.

 

Juliano Ferro

Recife, junho de 2024.

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